“O pensamento escolhe. A Ação realiza. O homem conduz o barco da vida com os remos do desejo e a vida conduz o homem ao porto que ele aspira a chegar. Eis porque, segundo as Leis que nos regem, a cada um será dado segundo suas próprias obras”.

(Emmanuel)

domingo, 15 de janeiro de 2012

Maria do Balanço

Na cidade onde nasci, vive uma louca que as pessoas apelidaram de Maria do Balanço. Nem ela mesma sabe o seu verdadeiro nome e parece não se importar que a chamem assim. Desde pequeno, eu a vejo na mesma esquina onde permanece até hoje. O apelido que lhe deram se justifica pelo fato de ela estar sempre balançando o corpo para frente e para trás, embalando, envolto em um xale, um boneco-bebê, que sempre carrega nos braços. Alheia ao calor escaldante dos verões e aos ventos gelados dos invernos, ela aperta a pequena criança contra o peito e a embala como se quisesse fazê-la dormir... Maria do Balanço é uma mulher alegre: ri, conversa com todo mundo e adora bebês. Certa vez, encontrei, nas proximidades da rua em que Maria costuma ficar, uma amiga que carregava a filha de 4 meses em um carrinho. Começamos a conversar e nos distraímos um pouco. Quando percebemos, a louca estava com a filha de minha amiga no colo, ninando-a. A criança parecia estar gostando muito daquele agrado.
Como é comum nas pequenas cidades - e talvez devido à necessidade inerente ao ser humano de explicar comportamentos considerados estranhos - muitas histórias se criaram em torno dessa figura que já faz parte do folclore do lugar. A mais conhecida conta que Maria vinha de uma família muito rica. Solteira, engravidou de um rapaz numa época em que essa situação era intolerável aos olhos da sociedade. Então, os pais a levaram para outra cidade a fim de que completasse a gestação e tivesse o bebê em segredo. Tão logo o filho nascera, a família de Maria entregou-o para adoção. Maria não teve sequer a chance de segurá-lo, beijá-lo, afagá-lo, amamentá-lo.
E eu me criei convivendo com aquela figura tão peculiar, pois - para ir à casa de minha avó, que ficava ali perto - precisava deparar-me com aquela estranha mulher. No início, quando pequeno, assustava-me dela. Tinha medo – repulsa, até. Com o tempo, fui me acostumando com a sua presença, como nos acostumamos com a construção de um novo prédio, com a ausência de uma árvore que tombou no último vendaval, com alguma figura esquisita recém-chegada à cidade...

Passaram-se os anos, e eu já mudei algumas vezes de cidade. Meus sonhos também mudaram. Alguns abortei; outros me arrancaram. No entanto, Maria - hoje com cabelos brancos e pele enrugada - continua sempre ali, acalentando o filho que nunca chegou a conhecer.

Agora ela não me é mais uma figura estranha. Cada vez que a vejo, olho-a com aquele olhar solidário que destinamos aos nossos iguais. Sim, Maria do Balanço e eu nutrimos certa cumplicidade. Quantos de nós tivemos nossos sonhos arrancados? Quantos de nós, consciente ou inconscientemente, deles abrimos mão? Quantos de nós vivemos a acalentar sonhos passados a cada final de domingo, a cada ida ao trabalho, a cada anoitecer?

Maria permanece ali, naquela esquina, como se quisesse me lembrar de todos os meus sonhos que ficaram para trás. Ela é o retrato vivo de todos os sonhadores que jamais abrem mão de suas utopias. Eles acalentam sonhos. Ela acalenta o filho que jamais terá. Mesmo assim, impressiona-me a devoção daquela mulher àquele filho que nunca conheceu, que jamais foi seu. Na verdade, invejo sua fidelidade e seu compromisso (tão próprio dos loucos) à sua verdade, real ou inventada. No entanto, fui na direção contrária: me esqueci, abri mão de muitos dos meus sonhos... Talvez, justamente por isso, a sociedade me considere normal, saudável – respeitado, até. Sobrevivi. Mesmo assim, tenho consciência de que jamais terei a dignidade daquela mulher. Por isso, toda vez que a vejo, silenciosamente, lhe peço:

“Embala também meus sonhos, Maria. Que eles continuem vivos ao menos em ti. Acalenta-os e faze-os dormir, porque, assim como teu filho, eles jamais voltarão a mim.”

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