“O pensamento escolhe. A Ação realiza. O homem conduz o barco da vida com os remos do desejo e a vida conduz o homem ao porto que ele aspira a chegar. Eis porque, segundo as Leis que nos regem, a cada um será dado segundo suas próprias obras”.

(Emmanuel)

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Sem estar sozinha...





Tinha o olhar doce, mas orvalhado de suplica.

“ Por favor senhor doutor, não me mande para casa…”


Estranhos desígnios estes, que hoje a faziam recusar, o que tanto amara a vida inteira; a sua casa, o seu templo, trono de seu único reinado, paraíso onde sempre fora dona e senhora, talvez rainha soberana, quem sabe.
Gostava de tudo nos seus lugares. Tudo, porque tudo eram pequenos farrapos dela e, por isso, nada estava a mais, porque tudo lhe fazia falta. Eram coisas velhas como ela, mas suas, muito suas! Que ninguém viesse sequer dizer-lhe para substituir os tapetes, que outrora tecera com trapos, por carpetes. Ou então, para guardar as suas rendas e bordados na arca. Estavam fora de moda? Que estivessem, queria-os ali mesmo, em cima das cómodas e mesinhas de cabeceira a fazerem-na feliz. Há muito que dizia ao filho, que os seus tarecos falavam com ela e lhe adivinhavam as memórias, as tristezas e as saudades. Ele não acreditava, parecia-lhe que às vezes até se ria do que ela dizia. Por certo, achava-a senil, o maroto. Magano a mangar dela.
Ele era o seu menino, sempre fora. Mesmo casado e de vida feita lá por França, sempre o embalara no coração e era o cheiro dos caracóis macios e loiros o que ela sentia, quando de saudades, fechava os olhos a recordá-lo.
Mas isso fora até há cinco anos atrás, antes da vida dele andar em bolandas e se ter divorciado. Se ficara triste? Nem sabia bem definir. Ora, antes assim! Já que o amor acabara e netos não havia. Mas no íntimo de si, como um segredo jamais revelado, habitava a felicidade maior de o ter de regresso à sua casa e aos seus cuidados, precisamente no dia em que ele festejava cinquenta anos de vida.
Passara então a tê-lo por perto, todos os dias… ou quase todos.
Gostava de lhe aprontar a refeição, de ficar à sua espera de mesa posta, tacho fumegante e a saliva a crescer-lhe na boca. Não, nunca comia sozinha, a não ser que ele tardasse sem a avisar e o avanço das horas lhe confirmasse a ausência.
Gostava de lhe tratar das camisas, engomá-las a preceito sem dobras ou vincos, que esses, só nas calças, como pertencia. Deixava depois, tudo pendurado em cabides e nos seus devidos lugares. Não queria que nada lhe faltasse, nem que ele sentisse falta de nada.
Havia dias, em que as pernas já se arrastavam para ir à mercearia mas, Rosinha, a filha do Joaquim, trazia-lhe às vezes as compras a casa, pois por poucas que fossem, pesavam sempre mais do que aquilo que conseguia suportar.
“ D. Hermínia, a senhora já não tem idade para estas coisas, o seu filho é que havia de tratar de si”, dizia-lhe Joaquim, o merceeiro e amigo de muito ano.

Sabia-o. Sentia os oitenta e quatro anos pesarem-lhe cada vez mais no ânimo, mas enquanto o corpo pudesse e o Senhor lhe permitisse, seria ela a cuidar dele.
E cuidou, até há pouco mais de quinze dias atrás, em que o corpo deixou de puder.
Adoecera com uma pneumonia, ficara acamada no hospital e, dia após dia, sentira fugir-lhe das pernas a força necessária para se manter de pé. Ao fim de uma semana, findo o tratamento e curada a doença, teve de voltar para casa. Não podia ficar mais tempo, havia que dar lugar a outros, quem sabe velhos, tal como ela.
O filho protestou. Que não podia tomar conta, que era complicado…
As soluções eram poucas, sabia-o. Mas o Centro de Saúde vigiaria, a Santa Casa da Misericórdia apoiaria e o filho haveria de a mimar, claro! Voltava então para o seu canto e isso era, o mais importante.
Seria?
Nem imaginara na altura, o quanto estava errada. Soube-o em pouco tempo.

Era a terceira vez na última semana, que o filho a trazia à urgência.
Primeiro, porque a achava pálida, depois, porque não evacuava e agora… agora, ouvira-o dizer à enfermeira, sem pudores ou falsos equívocos: “ Desculpem, mas não tenho tempo nem vida para cuidar dela. Negócios, sabe como é!?”
Pressentiu o fim naquele derradeiro segundo, em que a voz doce do seu menino lhe gelou a alma. Sentiu finalmente o cansaço de viver e rendeu-se vazia, de tanta solidão.
Apertou a mão do médico com força e com a lucidez a transbordar-lhe dos olhos, continuou;

“… não mande, p'la sua saúde. Eu só quero morrer, sem estar sozinha.”

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